Mordo a minha boca
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Um pouco ou muito. Depende do dia. Mas, cada pelinha ressecada que vai soltando me dá um prazer imenso e são poucos os meus prazeres na vida. Até que sangra e eu entro um pouco em desespero e penso “por que você faz isso com você mesma????” e logo estanco e mordo do outro lado que não está machucado.
Minha cachorra morreu. Se você não é o tipo de pessoa que entende que minha cachorra era minha família, não precisa mais ler esse texto. Você não é meu tipo de pessoa. E a Dolly era.
A antropologia diferencia pessoa de indivíduo e diz que animais podem ser humanizados. Dar um nome a alguém, entre outros fatores, contribuem pra formação de uma pessoa.
E a Dolly era a Dolly. Doce, traiçoeira, de personalidade própria. Nunca latiu. Nunca chorou alto, apesar de eu dizer que ela chorava alto quando ela dava um resmunguinho bem baixo. Eu dizia “por que você tá chorando alto?” e beijava-a.
Eu tive que sacrificá-la. Eu e a minha mãe pensamos três dias inteiros se fazíamos isso. Porque, em teoria, a gente não mata quem a gente ama. Porém, a gente deixa sofrer quem a gente ama?
Ela não comia mais, nem peito de peru que era sua comida preferida. Ela não se mexia mais. Ela não respirava direito mais. Ela não tinha forças pra segurar a própria cabeça mais. E o veterinário vinha todo dia em casa pra tentar ajudar. Ele também é contra eutanásia, principalmente de uma cachorra que ele cuidou por 13 anos, mas, era isso, ou ver ela sofrer demais.
Eu assisti a agonia da minha avó Sucubum. Uma mulher que sempre foi ativa, que andava a Vila Guilherme e o Carandiru e Santana inteiros. Definhou. Se tornou um vegetal. E, ao contrário da Dolly que era uma pessoa, minha vó foi se despersonalizando, se tornando uma obrigação, ainda que existisse um amor do tamanho do mundo. Viver, de vez em quando, se torna um problema.
Eu não queria ver a Dolly virar minha Vó Sucubum. Eu não queria aquele sofrimento. E a ansiedade de saber quando ia acontecer o inevitável me consumia. Eu também não queria matar ela.
A coisa mais difícil da minha vida foi pegar a Cachorra no colo e sair com ela de casa pro veterinário. Minha mãe, que ficou em casa, começou a chorar e gritar de um jeito que eu nunca vi. Meu pai ficou parado atrás da porta chorando ouvindo o desespero da minha mãe. E eu, no meio da escada, só disse, bem firme “desce, vamos”. Tive que falar duas vezes.
Fiquei de olho no celular o tempo todo torcendo pra minha mãe mandar mensagem pedindo pra gente desistir, mas ela não mandou.
Eu assisti a Dolly fechando os olhinhos, bem devagarzinho. Ela dormiu um sono em paz. Mas, ela não acorda no final.
A Dolly gostava da toca dela, se enfiar dentro do guarda-roupa, passear, comer (principalmente peito de peru), da companhia do meu pai, tirar longos cochilos, chorar alto (bem baixinho) e de fazer cocô na porta do banheiro enquanto a gente tomava banho (ok, isso não era legal porque saíamos limpinhas e pisávamos na bosta).
A Dolly viveu 18 anos. Sendo 13 conosco, porque quando ela tinha 5 anos um homem a largou no quintal da cabeleireira que mora do lado de casa. Ele simplesmente abandonou ela lá cheia de pontos de uma cirurgia que tinha feito de emergência. A nossa suspeita é que ela era matriz de canil, deu ruim e eles largaram ela lá. Que bom que isso aconteceu, que bom que a gente se encontrou.
Eu acho que a Dolly foi feliz com a gente da mesma forma que fomos com ela. E agora minha mãe está destruída. Nós viemos pra casa do meu tio em Campos do Jordão porque ela não quer ficar em casa sem a Folly. Uma hora vamos ter que voltar.
Acho que esse não é um texto bonito. Não tem frase de efeito. Não tem eu contando nada interessante. Apenas narrando uma série de fatos que vão desgraçar ainda mais minha cabeça.
Eu fico triste com o corpo. Eu fico estragada de doente quando tô triste. Eu e minha mãe não dirigimos e aqui em Campos temos que andar bastante pra fazermos as coisas. Hoje eu quase desmaiei indo almoçar. Agora tô com falta de ar e dor de cabeça.
As ideias querem sempre sair pra fora da minha cabeça. Talvez seja isso que machuque.
Morrer deve doer.
Viver dói mais ainda.