Todos aqueles mortos

Natalia Assarito
3 min readJul 23, 2024

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Eu falei que não ia mais voltar.

As coisas estão aqui, na minha cabeça. E elas se comportam como uma fresta de sol que bate no olho. Não tem como ignorar. Talvez escrever nunca tenha me trazido nada de excepcional, mas já me trouxe muita confusão.

Falei sobre a maldade do tempo em outro texto. Mas, acho que mais do que nunca a tenho sentido. Ontem fez dois anos que minha Vó Sucubum morreu. Foi embora. Não volta mais. E, na igreja que ela frequentava, eles costumam fazer preces e pedidos pros antepassados. Ontem eu percebi que agora ela é uma antepassada. Então, eu preciso repetir: eu odeio a maldade do tempo.

Foi a suicida, quando caiu exatamente ao lado da janela do meu quarto que me fez acordar do sonho da mudança. E do namoro novo. Parecia que eu ia ser feliz pra sempre. Até que uma desconhecida se jogou da janela do nono andar. Ficou com o corpo inerte na minha janela um dia inteiro.

E eu rezo absolutamente todas as noites desde então. Pela alma dela e pela força da família, pra eles aguentarem firmes e com propósito na vida– eu não sei se posso escrever sobre suicidas, então talvez eu seja banida.

Foi depois da morta que minha mãe piorou. E que eu tive que segurar as pontas, porque eu sou quem segura as pontas. Quem sente culpa por voltar tarde. Quem não dorme mais fora porque minha mãe tem medo do fantasma da moça que não tinha asas. Quem precisa o tempo todo manejar os desejos opostos dos meus pais e do meu namorado sobre o que seria melhor pra mim.

Ocasionalmente, penso que o melhor pra mim ainda não apareceu, está em iminência, vai chegar. Uma hora vai chegar. E talvez, quem sabe, esse melhor seja ser banida. E nunca mais escrever.

Não entendo muito bem, mas eu só sou 100% sincera com os meus sentimentos quando eu escrevo e a minha sinceridade só me causa problemas.

Hoje, pela manhã, eu chorei porque minha avó é uma antepassada. Minha maior preciosidade.

Hoje, pela tarde, eu chorei porque minha mãe foi ontem pra praia e hoje precisou voltar porque estava tendo um avc – não era um avc, era ansiedade, a mesma que ela sente desde que a morta morreu.

Hoje, pela noite, eu chorei por um motivo que eu tenho medo de ser processada se discorrer sobre. Mas, é isso. “Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã”. E a minha ferida parece que se acomodou no nunca. Acomodar é uma boa palavra.

Eu queria que meus pensamentos intrusivos fossem uma fresta de sol que vai embora quando fechamos a janela. Eu queria que esse texto fosse uma janela fechada. Que daqui não passasse mais luz. E eu pudesse seguir em frente.

De todo mundo que morreu, esse pouco em mim que não ficou, certamente, é o principal.

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Natalia Assarito

cientista social. Transformo angústias em texto. Instagram: @nanaleitora